segunda-feira, 23 de setembro de 2013

As lições econômicas de Game of Thrones
por , quinta-feira, 20 de junho de 2013




A popular série Game of Thrones ("Guerra dos Tronos"), da HBO, terminou a sua terceira temporada neste mês em meio a preocupações dos fãs acerca do seu cada vez mais minguante elenco de personagens. A série é baseada na intricada coleção de livros de fantasia de George R. R. Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo, a qual tem se tornado uma inspiração para análises e comentários de todos os matizes. E, enquanto os seus personagens complexos e moralmente ambíguos têm atraído muitos analistas e comentaristas políticos e literários, há também importantes lições econômicas a serem aprendidas dos livros.
A trama de Martin se refere a uma variedade de assuntos econômicos — desde as implicações do fato de não existir sequer um sistema econômico até os problemas da moeda e das finanças estatais. Em outro artigo (e numa entrevista), nós discutimos tais problemas e explicamos como os governantes do continente de Westeros recorrem aos métodos tradicionais do financiamento estatal: tributação, endividamento e inflação.
O meio político e o meio econômico
Neste artigo, discorreremos sobre algumas das outras implicações econômicas da série, especialmente acerca das ideias a respeito da ordem social e acerca do papel que a cooperação pacífica, o comércio e a moeda desempenham na organização da sociedade. Franz Oppenheimer famosamente realizou a distinção entre o "meio político" e o "meio econômico" de organização social. O primeiro implica a coerciva redistribuição de riqueza; a riqueza, entretanto, é criada apenas por aqueles que estão envolvidos no meio econômico de organização, o qual se baseia na produção pacífica, no comércio e na troca. (1926, pp. 24-27.)
Essa distinção aparece de forma muito clara em As Crônicas de Gelo e Fogo. Por exemplo, povos tão diferentes como os Dothraki e os Homens de Ferro são cabais e resolutos exemplos do meio político. Ambas as sociedades produzem pouco ou nada por si mesmas; ao invés disso, prosperam por meio da violência e da pilhagem. Uma perfeita ilustração é encontrada no "código" (lema) da Casa Greyjoy, a qual proclama: "Nós Não Semeamos." A insinuação, por óbvio, é que os homens das Ilhas de Ferro apenas ceifam os frutos daquilo que os outros semearam. [1] O lema da Casa Greyjoy é uma hábil e adequada descrição do estado, o qual é, fundamentalmente, uma instituição parasitária que depende, para a sua sobrevivência, do saque de uma população produtiva.
Mas a distinção entre o meio político e o meio econômico aparece também em situações mais sutis. Até mesmo nas partes relativamente pacíficas do reino, nas quais a ordem civil é mantida e a exploração é menos óbvia, vê-se claramente que os interesses dos governantes e dos governados são diferentes, da mesma forma como são diversos os meios de se obter a prosperidade. Martin atinge o cerne da questão numa conversa entre Daenerys Targaryen e o seu parceiro, Ser Jorah Mormont. Daenerys acredita que o reino que a sua família uma vez governou se erguerá em defesa da pretensão do seu irmão ao trono. Ela observa: "O povo está esperando por ele. Magíster Illyrio diz que as pessoas comuns estão confeccionando bandeiras de dragões e rezando para que Viserys retorne através do Mar Estreito para libertá-las." A resposta que ela recebe é simples, mas esclarecedora:
"As pessoas comuns rezam por chuva, por crianças saudáveis e por um verão que nunca termine", disse-lhe Ser Jorah. "Não lhes interessa  a guerra dos tronos que os grandes lordes jogam, contanto que sejam deixadas em paz." Ele encolheu os ombros. "Elas nunca são."
É facilmente perceptível, em As Crônicas de Gelo e Fogo, a ideia de que o comportamento político traduz-se essencialmente em pilhagem criminosa. Davos Seaworth, em outro trecho, reflete acerca da trajetória do marinheiro Salladhor Saan, seu amigo e camarada, que é "um contrabandista... bem como um comerciante, um banqueiro, um pirata notório e o autoproclamado Príncipe do Mar Estreito". Davos, então, conclui para si mesmo: "Quando um pirata enriquece o suficiente, fazem-no um príncipe." [2]
Moeda e Sociedade
Além de discutir a essência do governo, a série contém outras ideias econômicas também. Um proeminente exemplo é o forte entendimento da narrativa sobre o papel que a moeda desempenha na sociedade. Em particular, o desdobramento da história fornece exemplos de diferentes estágios de desenvolvimento econômico; e tais estágios estão intrinsecamente ligados às diversas percepções culturais sobre atividade econômica e moeda.
Os horselords Dothraki — o descentralizado grupo de tribos guerreiras que vagueiam pelo continente oriental — são óbvios exemplos. Os Dothraki não praticam nenhum comércio, e o máximo de interação social pacífica a que chegam é um vago sistema de troca de presentes. Eles, portanto, não utilizam moeda — e a sua civilização reflete profundamente esse fato.
Sem um sistema de troca indireta, eles são incapazes de desenvolver bens de capital, contando, ao invés disso, com as receitas redistributivas das pilhagens para sobreviver. Eles são amplamente nômades, faltando-lhes a capacidade (ou o desejo) de produzir e comerciar. Com efeito, as únicas estruturas permanentes da cidade de Vaes Dothrak são aquelas construídas por escravos estrangeiros, com a utilização de materiais saqueados. A inexistência de uma sociedade complexa pode ser atribuída à recusa deles de se engajarem em atividades econômicas e, por consequência, de adotarem um meio de troca. Já que a moeda torna possíveis as decisões empreendedoriais necessárias para o desenvolvimento da economia, o cálculo econômico, portanto, é tão impossível para os Dothraki quanto para uma sociedade socialista.
Uma segunda fase de desenvolvimento econômico é representada pelos "selvagens vulgares" (wildlings) que vivem além da Muralha, ao norte dos Sete Reinos. Eles não possuem uma autoridade política centralizada e orgulhosamente referem-se a si mesmos como o "povo livre" (free folk). [3] Embora não sejam tão economicamente desenvolvidos quanto os Sete Reinos, os wildlings são mais avançados do que os Dothraki. A atividade econômica existe na forma de relações de escambo entre alguns grupos relativamente pacíficos. No entanto, devido à constante guerra com os povos situados ao sul da Muralha, os free folk não podem se engajar em comércio prolongado, planejamento a longo prazo ou cooperação social. Forçosamente excluídos da sociedade, eles ficam restritos a levar uma existência num ambiente pobre em recursos, alcançando não mais do que o mínimo de desenvolvimento econômico.
Em terceiro lugar, os Homens de Ferro, assim como os Greyjoy, são, no tocante à moeda, um caso mais intermediário. A sua obsessão com a conquista os conduz a minimizarem o comércio e o uso do dinheiro — o que eles ridicularizam como "pagar o preço do ouro". Sob o ponto de vista da sua cultura, os homens, ao contrário, devem pagar o "preço do ferro" por qualquer vestimenta que vistam ou qualquer luxo de que desfrutem; em outras palavras, qualquer coisa de valor que alguém possuir deve ser arrebatada do corpo de um inimigo assassinado. Apesar de terem sido parcialmente integrados, à força, à vida econômica e social dos Sete Reinos, os Homens de Ferro fazem um esforço consciente para manterem o seu antigo modo de vida baseado na expropriação. Consequentemente, eles restringem o seu uso do dinheiro a uma esfera relativamente pequena.
Um nível maior de sofisticação econômica pode ser encontrado nos Sete Reinos de Westeros. A política dos Sete Reinos é similar àquela de uma sociedade feudal, na qual "os homens se tornavam ricos através da guerra e da conquista e por meio da liberalidade do governante soberano. Os homens se tornavam pobres quando eram derrotados em batalha ou quando não mais se encontravam nas boas graças do monarca." (Mises, 2006, p. 158.) Tenha você lido ou não os livros, a história é familiar. Deparando-se com a dificuldade de financiar uma guerra aparentemente sem fim, o Mestre da Moeda (uma posição equivalente a Ministro das Finanças) concebe novos tributos; mas esses duram apenas enquanto a população for capaz de pagar. Os governantes estão dolorosamente conscientes de que "metade dos senhores do reino não poderia tolerar uma tributação tirânica e fugiria num piscar de olhos para o usurpador mais próximo caso isso lhes salvasse uma moeda de cobre". O endividamento (empréstimos) também serve à coroa; entretanto, embora isso dê a ilusão de prover um almoço grátis, trata-se de um meio custoso, que não oferece soluções duradouras. Num momento da história, Cersei Lannister sonha fundar o seu próprio banco, para que ele lhe seja uma permanente fonte de fundos. O ultimo recurso, então, é a criação de dinheiro — o que Lorde Littlefinger realiza através da (historicamente costumeira) prática de degradar a moeda.
As frequentes guerras entre as famílias governantes de Westeros — embora estas não sejam tão militaristas quanto os Homens de Ferro — destroem periodicamente a riqueza acumulada da "classe baixa" (small folk), como os nobres a chamam. Devido ao conflito constante, muitas populações nos Sete Reinos lutam para sobreviver um dia após o outro. A poupança, por exemplo, é quase impossível para a classe popular; e até mesmo os cavaleiros e os nobres têm dificuldade de praticá-la. Não é surpreendente, então, que a economia, de modo geral, não evolua além dos estágios iniciais de acumulação de capital e demonstre estar estacionada no mesmo nível de desenvolvimento por milhares de anos. As indústrias que prosperam e desencadeiam a maior parte do desenvolvimento tecnológico são as indústrias da guerra, em detrimento dos empreendimentos pacíficos e produtivos. Os armeiros e os construtores de barcos, por exemplo, são claramente descritos como aproveitadores que se beneficiam do tumulto político.
Dada a centralização do poder nos Sete Reinos — e dada a complexa rede de intrigas e privilégios que vem junto com ela —, não é surpresa que sejam comuns os estrondosos exemplos de desperdícios estatais. O torneio de Robert Baratheon requer um total de "noventa mil peças de ouro" somente em prêmios. Adicionalmente, em função de Robert desejar uma "festa prodigiosa", o Mestre da Moeda contrata, entre outros, "cozinheiros, carpinteiros, garçonetes, cantores, malabaristas e palhaços". O Conselho é rápido em argumentar — lançando mão da falácia da janela quebrada — que "o reino prospera" através de tais eventos e que as pródigas despesas em torneios também trazem "aos grandes uma oportunidade de glória e aos humildes uma trégua de seus problemas e suas aflições". O mesmo raciocínio é usado para justificar outras ultrajantes e escandalosas gastanças, como o extravagante casamento do Rei Joffrey.
As economias mais desenvolvidas de As Crônicas de Gelo e Fogo encontram-se nas assim denominadas Cidades Livres. As nove cidades-estado do outro lado do Mar Estreito ostentam "um número de templos e torres e palácios" duas vezes maior do que aquele encontrado em Westeros e são bem conhecidas pelo seu comércio de tapeçaria, carpetes, rendas, vinhos e especiarias. Cosmopolitas e poliglotas, as Cidades Livres possuem também muitos estabelecimentos lucrativos de empréstimo de dinheiro: "Cada uma das Nove Cidades Livres tem o seu banco, e algumas têm mais de um, lutando por todas as moedas como cachorros por um osso." Os bancos proveem ajuda financeira para os estrangeiros, especialmente para as famílias de nobres dos Sete Reinos, e a reputação deles faz com que sejam peças-chave na guerra dos tronos: "Quando os príncipes falham em quitar as dívidas com o Banco de Ferro, novos príncipes brotam do nada e tomam os seus tronos."
As Cidades Livres não são estranhas à luta política, obtendo a grande custo a relativa liberdade que possuem. Braavos, agora a mais nova e mais poderosa cidade, foi fundada por escravos refugiados, os quais desde então se esforçam para eliminar a escravidão na região das Cidades Livres.
Outros indivíduos também aprenderam severas e desagradáveis lições econômicas. Volantis era a mais antiga e a maior das Cidades Livres, mas perdeu a sua riqueza numa vã tentativa de conquistar as outras. Governantes volantinos "favoreciam a espada, enquanto os mercadores e os banqueiros defendiam o comércio. [...] Após um século de guerra, Volantis encontrava-se quebrada, falida e despovoada." Somente após o abandono das aspirações militares, somente após a renovação da atividade comercial pacífica, é que a cidade retornou à prosperidade.
Para concluir, é importante assinalar que a obra As Crônicas de Gelo e Fogo se baseia extensamente na história medieval, a qual vivenciou mais do que a sua quota de guerras e destruição econômica. História ou fantasia, a guerra dos tronos — o uso do meio político — impede a propagação e a difusão de ideias econômicas saudáveis, sendo afastadas, assim, as boas políticas econômicas. Graças aos Sete Reinos e ao seu vício pela guerra dos tronos, quando ocorrem a paz e a prosperidade em Westeros, a única coisa da qual podemos estar certos é: O Inverno Está Chegando.

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Referências:
MARTIN, George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Game of Thrones. New York: Bantam Books, 1996.
MARTIN, George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Clash of Kings. New York: Bantam Books, 1999.
MARTIN, George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Storm of Swords. New York: Bantam Books, 2000.
MARTIN, George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Feast for Crows. New York: Bantam Books, 2005.
MARTIN, George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Dance with Dragons. New York: Bantam Books, 2011.
VON MISES, Ludwig. The Causes of the Economic Crisis. Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 2006.
OPPENHEIMER, Franz. The State: Its History and Development Viewed Sociologically. New York: Vanguard Press, 1926.

Tradução: Marcelo Werlang de Assis



[1] Por exemplo, Balon Greyjoy proclamou-se "Lorde Ceifador".
[2] Tal sentimento é similar àquele encontrado na história de Santo Agostinho acerca do diálogo entre Alexandre, o Grande, e um pirata:
Removida a justiça, o que são os reinos senão grandes assaltos, e os roubos, senão pequenos reinos? O bando, em si, é formado de homens; é governado pela autoridade de um príncipe; é unido pelo pacto de uma confederação; o butim é dividido pela lei pactuada. Se, pela admissão de homens abandonados, esse mal aumenta a tal grau que domina lugares, fixa estabelecimentos, toma posse de cidades e subjuga povos, ele assume mais claramente o nome de reino, porque essa é a realidade que lhe é manifestamente conferida — não pela remoção da cobiça, mas sim pela adição da impunidade. Com efeito, foi uma resposta adequada — bem como essencialmente verdadeira — aquela que um pirata capturado deu a Alexandre, o Grande. Quando este rei lhe perguntou o que queria dizer com "manter a posse hostil do mar", o pirata respondeu com orgulhosa insolência: "O mesmo que tu queres dizer quando falas da conquista da Terra inteira; mas, porque eu o faço com um pequeno e insignificante navio, eu sou chamado de ladrão, ao passo que tu, que o fazes com uma grande frota, és chamado de imperador."
[3] A linguagem usada para descrever os povos do extremo norte revela sentimentos políticos mais profundos. Aqueles do sul referem-se aos do norte como "selvagens vulgares" (wildlings) e consideram como bárbaro o seu modo não submisso de vida. Por outro lado, aqueles do norte chamam a si mesmos de "povo livre" (free folk) e ridicularizam os povos que se encontram ao sul da Muralha — os quais são todos parte de um estado ou de outro — rotulando-os de "os que se ajoelham" (kneelers).

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Daenerys Targaryen, Ser Jorah Mormont e os Dothraki

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"Nós Não Semeamos." — Casa Greyjoy

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Balon Greyjoy — O "Lorde Ceifador"

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Davos Seaworth (à esquerda) e Salladhor Saan (no centro)

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Cersei Lannister

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Lorde Littlefinger

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Robert Baratheon

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Joffrey Baratheon

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"Quando você joga a guerra dos tronos, ou você vence ou você morre."

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Mapa do mundo de As Crônicas de Gelo e Fogo

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