segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

ABAIXO OS PAIS DA PÁTRIA
A imagem da semana. Deveria ser a de todos os dias.
 
Três fatos da semana que passou merecem ser comentados. São os seguintes:
 
1 - a morte do líder anti-apartheid sul-africano Nelson Mandela ou, mais precisamente, a onda de mistificação histórica que se lhe seguiu, com contornos necrofílicos e de verdadeiro culto da personalidade, assunto de que tratei aqui em vários textos;
 
2 - a derrubada de uma estátua de Lênin, o líder da Revolução bolchevique de 1917 na Rússia e fundador da finada URSS, por um grupo de manifestantes que protestavam contra o governo pró-russo de Viktor Yanukovich, em Kiev, Ucrânia, e
 
3 - as revelações bombásticas do ex-secretário nacional de Justiça, o delegado da Polícia Federal Romeu Tuma Júnior, em livro recém-lançado (Assassinato de Reputações), entre as quais a existência de uma fábrica de dossiês no governo petista contra adversários políticos e o fato espantoso de que Luiz Inácio Lula da Silva foi um informante do DOPS, a polícia política do regime militar, nos anos 70 e 80 - o que o transforma, provavelmente, na maior farsa da História política do Brasil (além de testemunha indispensável a ser ouvida na "comissão da verdade" criada ironicamente para denunciar os crimes da ditadura militar).
 
Não escolhi as três notícias por acaso. Elas estão intimamente relacionadas, assim como os personagens em questão. Não obstante as diferenças óbvias existentes entre os três, Mandela, Lênin e Lula foram ou são líderes populares e carismáticos, com legiões de seguidores devotos e fanáticos. No caso de Mandela, as imagens do funeral não deixam qualquer margem à dúvida de que o personagem transformou-se, graças a um eficiente trabalho de endeusamento e desinformação, num semideus, sem qualquer relação com a realidade. O mesmo no que diz respeito a Lênin durante os anos da URSS. Quanto a Lula, partilha com os outros dois a aura de líder popular e ídolo da esquerda, apesar (ou, talvez, por causa) da montanha de denúncias de corrupção, que não param de se acumular. Enfim, os três são, cada um a seu modo, "pais da pátria". (Essa foi uma das expressões mais usadas na imprensa para se referir a Mandela, o "pai da nação sul-africana" etc.)
 
Aí está mais um bom motivo para destoar da multidão e não deixar de lado o senso crítico, que parece ter sido abandonado por grande parte da imprensa nesses dias. Tirando talvez os founding fathers, os pais fundadores dos EUA (que, mais do que um país, é uma ideia), desconfio de qualquer político (aliás, desconfio dos políticos em geral) que se apresentem, e que sejam considerados como, "pais da pátria". Por motivos que acredito serem óbvios.

Em primeiro lugar, o pai da pátria, o líder carismático e personalista, está sempre acima e à frente da população, colocando-se, assim, acima da própria democracia. Não deve ser por acaso que todos os países em que se cultuam líderes desse tipo - Bolívar na Venezuela; Gandhi na Índia; Jinah no Paquistão; Mao na China; Ho Chi Mihn no Vietnã; Nasser no Egito; Ataturk na Turquia; Perón na Argentina; Getúlio Vargas (ou, mais recentemente, Lula) no Brasil - têm problemas sérios com a democracia, ou ainda estão engatinhando no terreno democrático. Em geral, regimes totalitários ou países subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo (como eram chamados antigamente). É que a democracia é um sistema político essencialmente impessoal, baseado no império da lei e nas instituições, e não em homens fortes, do tipo caudilhos iluminados, que combinam mais com ditaduras.

Mesmo que o líder seja associado a causas irrepreensíveis como a luta contra o racismo, pela paz e pela democracia (o que não era bem o caso de Mandela, como procurei mostrar em meus textos anteriores), o fato é que a democracia, como forma de governar e filosofia política, é incompatível com o caudilhismo e o culto da personalidade, sob qualquer de suas formas. A democracia não combina com pais da pátria.

Em segundo lugar, o culto a caudilhos políticos, assim como a pop stars, é sempre algo irracional, baseado no emocionalismo e não nos fatos. A idolatria a Mandela - para ficarmos apenas no assunto que dominou as manchetes - não foge à regra, ancorando-se em doses cavalares de paternalismo e na infantilização das massas, que choram a morte do "paizinho" Madiba até com mais fervor do que se fosse alguém da família. Nos últimos anos, depois que deixou o governo em 1999, Mandela não fez mais do que estimular, mesmo indiretamente, esse tipo de comportamento irracional e infantilizado, ao qual não falta mesmo certo elemento erótico (vi um comentarista da Globo derramar-se melosamente em elogios ao sorriso de Mandela, "o mais bonito que já vi"...). Não há como negar o elemento de farsa nesse fenômeno. (Farsa bem ilustrada pelo episódio cômico-surreal do impostor que se fez passar por intérprete de sinais na cerimônia em homenagem a Mandela. Este, na verdade um esquizofrênico, tentou depois se justificar, dizendo que viu "anjos" no estádio de futebol... Um fenômeno de alucinação coletiva, na verdade.)  
 
Ao contrário do cada vez mais desacreditado Lênin, nem Mandela nem Lula foram derrubados do pedestal em que foram colocados por décadas de propaganda e bajulação por setores da política e da imprensa. É provável que a verdade sobre Mandela continue obscurecida durante muitos anos, pelo menos enquanto houver políticos e celebridades dispostos a continuar sustentando a mentira do líder pacifista e democrata (que comandou uma organização terrorista e era amigo de ditadores, é bom lembrar). Já Lula, o maior ícone da esquerda brasileira nas últimas quatro décadas, tem sua máscara retirada um pouco a cada dia, e as revelações de Tuma Júnior são uma marretada a mais no muro de mistificação erguido em torno do "maior líder operário da História do Brasil".

(E que marretada! O que torna ainda mais inexplicável que, com exceção da Veja, nenhum outro órgão da "mídia conservadora e capitalista" tenha dado publicidade às denúncias, as mais graves desde o mensalão, e que mereceriam, por isso, pelo menos uma edição especial do Fantástico... Até o momento em que escrevo estas linhas, reina um silêncio ensurdecedor sobre o assunto.)

Finalmente, como o segredo de aborrecer é dizer tudo (houve até um bobalhão que me chamou de "ressentido" por ter exposto fatos sobre Mandela...), aí vai uma história interessante, que a meu ver ilustra bem o mecanismo psicológico por trás do culto da personalidade, e que vale para os três casos citados acima.

Conta-se que, logo após a revelação dos crimes de Stálin (o Mandela da esquerda mundial até então), em 1956, um velho militante comunista brasileiro, adaptado aos novos ventos de mudança que sopravam de Moscou, assim definiu o culto à personalidade do "camarada" Stálin, o paradigma de todos os cultos da personalidade, e que era chamado geralmente de "pai" pelos comunistas do mundo inteiro até ser desmascarado como o tirano sanguinário que era: "- Em minha cidade, quando alguém chama outro homem de pai sem que seja seu pai biológico ou adotivo, damos um nome a isso: filho da puta"

Definição que cabe bem a quem esconde fatos para edulcorar biografias.
 
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