terça-feira, 21 de maio de 2013

Medicina em queda livre


Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Guilherme Rocha Melo

Você tem medo de andar de avião? É um medo natural. Desafiar a gravidade parece um contrassenso, então o que me permite continuar viajando frequentemente? Dois motivos.

O primeiro é objetivo: a razão. Eu sei que a estrutura da aeronave em que estou e seus sistemas foram testados segundo padrões internacionais muito bem estabelecidos pela engenharia e passam por revisões especializadas. Mas, principalmente, eu sei que os operadores (os pilotos, no caso) passaram por um treinamento adequado, reconhecido por um órgão que é competente em julgar proficiência.
Precisam comprovar ter acumulado um mínimo de horas de voo na curva de aprendizado, passaram pelos testes e são considerados aptos a levar-me em segurança segundo as regras nacionais.

Além disso, são guiados por uma torre de comando que segue protocolos exaustivamente testados para minimizar o risco de acidentes. Logicamente o evento de uma viagem segura é o desfecho mais provável.

O segundo motivo pelo qual eu continuo voando é chamado de confiança: é subjetivo e formado pela união de todos os elementos anteriores.

Você tem medo de entrar em um consultório médico? Pois bem, de forma análoga (embora com muitas particularidades) à da aviação, a relação entre médico e paciente sempre foi formada de razão e confiança. Medicina é uma ciência complexa, envolve no mínimo 6 anos de uma faculdade (teoricamente) exigente e precisa de uma rede de ensino atualizada e de uma estrutura física considerável composta de hospitais, postos de saúde e um corpo docente qualificado.

Se você passar por essas etapas com sucesso, sob fiscalização do conselho de classe você terá o seu CRM (certificado de registro médico). É como o brevê do piloto, uma autorização conferindo habilitação para que exerça a profissão segundo as regras locais. Essa é a lógica. A partir da união desses elementos com a postura ética do médico nasce a confiança do paciente.

Repito a pergunta: você tem medo de entrar em um consultório médico? Se morar em uma cidade do interior do Brasil pode começar a temer a partir de hoje. Foi reforçada a posição do governo em contratar médicos de outros países latino-americanos sem necessidade de revalidação de diploma no Brasil e entrada direta de pelo menos 6 mil profissionais cubanos no país sem necessidade de provar aptidão em Medicina.
Nada contra a participação de colegas médicos de outros países na construção da saúde nacional. Vários países do mundo o fazem com sucesso. Porém, em todos eles é necessário comprovar estar apto segundo os padrões vigentes.

Nos Estados Unidos, para praticar a Medicina no país, qualquer um precisa passar num teste chamado United States Medical Licensing Examination. Na União Européia há tratado de cooperação entre países, porém os Estados possuem liberdade em aplicar provas que acharem necessárias para testar a habilidade dos candidatos.

No Brasil o sistema atual prevê a possibilidade de médicos estrangeiros atuarem de maneira legal no país e é chamado de REVALIDA. Consiste em uma prova que exige conhecimentos básicos em Medicina. Pasme. Em 2010 de 502 médicos do exterior inscritos apenas 02 (isso mesmo, DOIS) passaram. Em 2011 dos 536 médicos estrangeiros que prestaram a prova apenas 12,12% foram aprovados.

A Medicina que se ensina em Cuba, na Bolívia e outros países latino-americanos é substancialmente diferente do que se julga padrão no Brasil. O corpo humano é um só, óbvio. A Medicina, também. Mas a maneira como se aborda um ser humano leigo e o transforma em médico numa universidade e na prática diária difere entre países e isso reflete diretamente no serviço que o mesmo irá prestar.

A proposta atual a ser assinada até junho pela presidência da república irá permitir que inclusive todos os reprovados no REVALIDA (leia-se: inaptos a praticar medicina segundo os órgãos médicos nacionais) atuem APENAS em cidades do interior. Na visão do governo, médicos de segunda classe para uma população de segunda classe.

Inclusive serão pagos com recursos diretos da União (algo que nunca foi oferecido aos médicos do Brasil, que brigam até hoje pela carreira de médico de Estado: algo que resolveria em grande parte o problema da falta de médicos nas cidades mais afastadas).

O povo do interior não é de segunda classe e merece médicos de qualidade para suas necessidades há muito conhecidas. Não faltam médicos no Brasil. Eles só não querem trabalhar como escravos de jaleco branco (sem direitos trabalhistas, com jornada de mais de 16 horas diárias e condições ruins de trabalho).

A torre de comando (governo) está desrespeitando vertiginosamente as regras básicas de gestão em saúde ao passar por cima dos órgãos médicos de classe e deixar esses pilotos da saúde despreparados (médicos sem REVALIDA) conduzirem os passageiros (população) pelas turbulências (saúde no interior) que se agravam.

Nós, médicos do Brasil, colegas com diplomas legalmente revalidados, estudantes de Medicina e pacientes, estamos em um avião desgovernado. Ou levantamos da cadeira do consultório, unimos forças, tomamos controle e mudamos a história dessa nuvem negra de desconstrução da Medicina e do médico ou podemos ensaiar nossas últimas palavras antes de virarmos pó no chão.

Guilherme Rocha Melo é Médico - CRM/SC 17.386

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