quarta-feira, 24 de julho de 2013

Martín Etchevers "A liberdade de expressão corre perigo na Argentina"

Autor(es): Mariana Queiroz Barboza
Isto é - 28/05/2013

Porta-voz do Clarín, principal grupo de mídia argentino, teme intervenção estatal, mas diz que o jornal não vai dar trégua ao governo

Maior conglomerado de comunicação da Argentina, o Clarín está em pé de guerra com a presidenta Cristina Kirchner. Nas últimas semanas, quando o grupo intensificou as denúncias de corrupção contra o governo, aumentaram os rumores de uma intervenção kirchnerista na empresa. Isso pode acontecer graças a uma recente mudança na legislação. No fim de 2012, Cristina conseguiu no Congresso a aprovação de uma lei que permite a acionistas minoritários intervir, por um período de até 180 dias, em companhias de capital aberto. Detalhe importante: o governo argentino detém 9% das ações do Clarín. Diretor da Sociedade Interamericana de Imprensa e da Associação de Entidades Jornalísticas Argentinas, Martín Etchevers, 44 anos, é o porta-voz do grupo desde 2000. Em entrevista à ISTOÉ, ele disse que "há ataques diretos e pontuais com o objetivo de intervenção" e que a liberdade de expressão no país "está em perigo". "Os Kirchner têm uma incompatibilidade com a imprensa, porque concebem os atores da sociedade como amigos ou inimigos", afirma. "Para eles, a imprensa sempre será uma inimiga."
Istoé -A democracia está ameaçada na Argentina?
Martín Etchevers - Vivemos na Argentina um modelo com traços extremamente autoritários. E isso nunca é compatível com uma verdadeira democracia. É claro que a liberdade de expressão está em perigo. Quando o governo utiliza seu poder econômico, regulatório e administrativo para perseguir quem pensa diferente, é o que o Pacto de San José (tratado internacional de direitos humanos) denomina como censura indireta.
Istoé -Qual é a principal acusação do Clarín contra o governo Kirchner?
Martín Etchevers - Os Kirchner mostram há vários anos uma vocação para a hegemonia de poder. Eles querem controlar todas as instâncias de poder de uma sociedade. Não só o Poder Executivo, mas também o Legislativo e o Judiciário. E, obviamente, a imprensa. Eles, primeiro, tentam seduzir a imprensa que não se curva, depois tentam cooptá-la e, por fim, destruí-la.
Istoé -O que caracteriza a relação dos Kirchner com a imprensa?
Martín Etchevers - Os Kirchner têm uma incompatibilidade com a imprensa, porque concebem os atores da sociedade como amigos ou inimigos. Não permitem aos autores autônomos ter posições críticas. A imprensa, que por sua própria natureza deve questionar tudo, sempre será uma inimiga para os Kirchner. Há uma incompatibilidade com a imprensa profissional, entendida como qualquer meio de comunicação que trate seu trabalho de informar com independência.
Istoé -O governo de Cristina Kirchner é corrupto?
Martín Etchevers - Sem dúvida, há casos emblemáticos de corrupção e o que o governo evidentemente busca é tratar de intervir no Poder Judiciário para evitar que essas questões sejam investigadas a fundo.
Istoé -Há alguma chance real de o governo argentino intervir no Grupo Clarín?
Martín Etchevers - Sim, porque há uma lei, aprovada em dezembro do ano passado, que permite ao Poder Executivo, sem intervenção da Justiça, designar uma comissão com direito a veto nas empresas e até de remover os diretores. Isso existe e está vigente. Na semana passada, alguns funcionários do governo passaram cinco dias no Clarín sem que ninguém desmentisse o projeto de intervenção. No último mês, houve ataques muito diretos e pontuais com esse objetivo.
Istoé -Quais foram eles?
Martín Etchevers - O primeiro foi a visita dos três mais importantes funcionários do Ministério da Economia à assembleia de acionistas do Grupo Clarín, com apontamentos totalmente insólitos e claramente trapaceiros, que tinham o objetivo de preparar o terreno para uma ação posterior. Um desses apontamentos foi de que o Grupo Clarín não ganhava dinheiro suficiente. Isso veio justamente dos mesmos funcionários que inventaram toda a maquinaria administrativa para sufocar financeiramente o Grupo Clarín. Além disso, houve outros apontamentos que não tinham nada a ver com a assembleia, como a falsa acusação de participação do jornal em crimes de lesa-humanidade.
Istoé -Por que o governo fez isso?
Martín Etchevers - Foi uma presença que buscava um show midiático e, ao mesmo tempo, preparar o terreno para uma ação arbitrária. Nos dias posteriores, houve uma mudança suspeita de funcionários na Comissão Nacional de Valores. Afastaram funcionários de carreira que se negavam a tomar medidas contra o Grupo Clarín e colocaram funcionários muito próximos do governo. Em 48 horas, chegaram ao Clarín 13 intimações por questões menores. Além disso, no dia da assembleia, vários dos presentes, começando pelo próprio Guillermo Moreno (secretário de Comércio Interior), falaram explicitamente que tinham as ferramentas legais para intervir na companhia. Ou seja, há razões para temer.
Istoé -O sr. acredita que essa intervenção acontecerá logo?
Martín Etchevers - Não sabemos. Agora, os funcionários do governo mudaram o discurso e dizem que a intervenção não está nos planos. Mas a verdade é que esse governo está acostumado a mudar as coisas do dia para a noite. Não se pode descartar nenhuma possibilidade. O importante nesse ponto é a sanção de dois decretos – um em Buenos Aires e outro em Córdoba – que colocaram um limite a esses avanços do governo federal e podem adiar esse projeto de intervenção estatal.
Istoé -A situação diz respeito só ao Clarín ou vocês acreditam numa ampla ameaça às liberdades?
Martín Etchevers - O que vimos foi uma soma de acontecimentos que vêm se multiplicando. Agora, o governo chegou a ponto de proibir que as empresas privadas façam publicidade em meios independentes, entre eles o Clarín. Ou seja, a posição oficial está cada vez mais escandalosa e arbitrária. Liberdade de expressão não é só poder dizer o que se quer, mas poder fazê-lo sem sofrer nenhum tipo de represália. E também poder fazê-lo em meios independentes. Na Argentina, não vão se criar muitos meios para exercer a liberdade de expressão se hoje cerca de 80% dos meios audiovisuais respondem direta ou indiretamente ao poder político.
Istoé -Por que a pressão do governo aumentou justamente agora?
Martín Etchevers - O governo voltou a fazer falsas denúncias quando um programa jornalístico do Grupo Clarín ("Jornalismo para Todos", do Canal 13) denunciou, com muitos dados, testemunhos e documentos, uma trama de lavagem de dinheiro vinculada ao poder político kirchnerista. Evidentemente, o Estado está atuando, através de seus organismos, em represália ao jornalismo crítico.
Istoé -Até 2008, os Kirchner e o Clarín eram grandes aliados...
Martín Etchevers - Não, jamais os definiria como grandes aliados. O que o Clarín faz, em qualquer situação política, é apontar as coisas que, em algum momento, não estão corretas. Dou o exemplo da renovação da Corte Suprema e a reestruturação da dívida externa. Muitas dessas ações foram iniciadas antes de Kirchner e o Clarín desde muito cedo marcou as deficiências desse modelo de gestão.
Istoé -Quais são essas deficiências?
Martín Etchevers - O Clarín foi o primeiro meio que falou dos superpoderes, termo que usamos para marcar a vocação dos Kirchner de todos os anos renovar o Congresso por meio de uma lei de emergência. O Clarín criticou desde o início a vocação dos Kirchner para exercer funções legislativas. Fomos os primeiros a criticar a reforma do Conselho de Magistratura de 2005 que buscava mais ingerência do Poder Executivo sobre o judiciário. Criticamos muitas coisas no kirchnerismo e, em alguns momentos, restauramos outras que achávamos positivas. Nos últimos anos, o governo cometeu muitos erros e o grupo os marcou naturalmente.
Istoé -Por que as denúncias veiculadas pelo Grupo Clarín se centralizam mais nos programas de tevê e não no jornal?
Martín Etchevers - O jornal trabalha em paralelo. Com certeza, a tevê tem um impacto muito forte, porque é o meio mais massivo. Mas, em muitos casos, os jornais têm uma sofisticação e uma quantidade de dados que fazem com que os leitores processem melhor a informação.
Istoé -Na semana passada, o governo determinou a mudança no horário de transmissão dos jogos de futebol aos domingos para competirem pela audiência do "Jornalismo para Todos". O que o sr. acha disso?
Martín Etchevers - O governo está demonstrando mais uma vez sua incompatibilidade com o exercício do livre jornalismo. Neste caso, apela para as ferramentas mais inverossímeis para tentar fazer com que a sociedade não acesse informações de importância pública.
Istoé -Atualmente, os jornais do mundo todo enfrentam dificuldades financeiras. O fato de o "Clarín" ser muito crítico ao governo, que é um importante anunciante, não pode comprometer o futuro do jornal?
Martín Etchevers - Não, o que coloca em perigo o futuro dos meios de comunicação é eles se relacionarem de maneira comercial com o poder político. É mais perigoso para um meio depender dos fundos públicos para sobreviver, dando um tratamento editorial favorável ao governo para receber o retorno economicamente. Um jornal que hoje vende poucos exemplares e sobrevive com publicidade oficial pode sucumbir, no dia de amanhã, quando mudar o governo.
Istoé -Na semana passada, o Clarín lançou um site com conteúdo em português. Por que o grupo decidiu investir no Brasil?
Martín Etchevers - Achamos que há um forte interesse do Brasil nas questões argentinas. Nossos "hermanos" do Brasil querem saber o que acontece na Argentina, porque também é uma maneira de alertar sobre os perigos que ameaçam as democracias quando surgem atos autoritários contra a imprensa. Além disso, a relação entre os dois países é cada vez mais fluida.
Istoé -O sr. enxerga alguma semelhança entre Cristina Kirchner e Dilma Rousseff?
Martín Etchevers - Se pensarmos na retórica política tanto de Dilma quanto de Lula, há várias frases de efeito parecidas com as dos discursos de Cristina. Mas, da retórica à ação concreta, há uma enorme diferença. Nesse sentido, o compromisso que há no Brasil com a liberdade de imprensa e a não interferência do Estado no mercado da informação está muito mais próximo de uma democracia plena do que na Argentina.

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