| 20 Maio 2013
Artigos - Cultura
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Geralmente é o lado emotivo que fala mais alto quando alguém, por ter perdido um ente querido por causa do câncer, louva Angelina Jolie como heroína da luta contra a doença. As defesas acaloradas são fruto da mesma paranóia que motivou a atriz em seu ato mutilatório e aparentemente inspirador também para outras celebridades.
Nas redes sociais se vê muitos que a atacam e a elogiam pelo ato, mas ambos centram-se no aspecto histórico da atriz ou da suposta inevitabilidade da doença hereditária. Mas este aspecto obstrui a visão do que está por trás do ato paranóico, e que diz muito mais sobre como as pessoas perderam a capacidade emocional de lidar com a possibilidade do adoecimento. Nada disso é novidade para quem leu ‘Nemesis Médica’, de Ivan Illich, que mostra o progressivo pânico gerado a partir da institucionalização da medicina.

O primeiro é a iatrogenia clínica, causada pelo cuidado médico, falta de segurança no uso de equipamento cirúrgico ou determinada tecnologia, uso ou abuso de drogas médicas. O famoso erro médico ou de diagnóstico. Em segundo lugar, há a iatrogenia social, decorrente da crescente dependência da população em relação ao uso de drogas que amenizam o sofrimento, tratamentos prescritos pela medicina em seus ramos preventivos, curativo, ambiental e industrial. Trata-se de um estabelecimento do papel do doente como ser passivo e que aguarda as soluções mágicas do medicamento, enquanto o médico salvador trará a tão sonhada cura. A dependência, neste aspecto, é a da autoridade médica que é uma extensão da autoridade científica. Este fenômeno real e que afeta inevitavelmente quase todo mundo, produz, por sua vez, um terceiro aspecto da iatrogenia que é a de feição cultural.
A iatrogenia cultural é a destruição potencial da capacidade de lidar com a enfermidade ou com a morte. A perda gradual de tudo o que as civilizações criaram como expedientes culturais eficazes para lidar com a vulnerabilidade da condição humana diante do inevitável, das contingências da vida. Todas as práticas culturais e tradicionais antigas foram substituídas pela figura do médico e da técnica profissional. Neste aspecto há o sonho, a perspectiva, da possibilidade da técnica estender indefinidamente a existência corporal humana, da eliminação definitiva de todo e qualquer sofrimento físico.
No final dessa linha está a ideologia do transhumanismo, que propõe libertar o ser humano de todas as suas limitações físicas e biológicas chegando até a propor a eliminação completa da dor e de todo tipo de sofrimento. Illich ressalta que essa mentalidade teria começado na Revolução Francesa, que deu origem ao mito de que os médicos podia substituir os clérigos e que a sociedade poderia voltar a um estado de “saúde original”, onde inexiste o sofrimento. Datam daquele período as primeiras propostas de saúde pública.
Pior do que a idealização da saúde, que em alguns casos pode estar associada a padrões de beleza e moralidade, é o pânico do sofrimento, a neurose causada pela inconformidade extrema com qualquer possibilidade de sofrer e mesmo de enfrentar o risco do sofrimento, como mostra bem o caso de Angelina Jolie.
Hoje o sofrimento é uma cruz por demais ingrata e inútil, afinal, a referência cristã que o laicismo militante considera tão cruel era a única coisa que conferia alguma dignidade ao sofrimento físico do ser humano, que, em certa medida, é inevitável. A dor de muitas pessoas se torna ainda pior e mais insuportável quando, em nome de um ideal de saúde, relaciona-se às doenças todo tipo de impureza, tal como em tempos remotos. Não tardará para que esta sociedade apartada da caridade cristã jogue seus “leprosos” em guetos imundos, para evitar o contágio dos considerados saudáveis ou, mais precisamente, dos que tenham dinheiro para pagar pelo tão sonhado fim de todos os seus sofrimentos.
Cristiano Derosa é jornalista e aluno do Seminário de Filosofia.
Link:
http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/14143-angelina-e-a-neurose-medica.html
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